A casa em que sua mãe trabalhava era grande, branquinha e brilhante. Cecília se divertia ao correr pelos salões, em silencio, claro, para não incomodar os patrões. A sensação da grandiosidade sempre foi atrativa, além de que, escutar as outras crianças chamando conseguia a deixar mais ativa.
Sua mãe realizava inúmeros serviços naquele lugar, lavar, esfregar, cozinhar e não sabia o quanto ela ganhava, mas achava que era o suficiente, já que desde que foi empregada, podia tomar leite todas as manhãs naquele lugar. Para quem olhasse de fora daqueles olhinhos brilhantes, perceberia que a mulher estava cansada, com uma fisionomia abatida, mais psicológico do que físico, eu podia observar.
Sr. Henrique e Dona Lúcia estavam sempre juntos, se em algum momento um estivesse sozinho, logo a companhia chegava. Particularmente acho essa atitude estranha. Humanos são seres independentes, pelo que sei. De qualquer forma, incomum são os sussurros, como se tivessem medo que o Diabo lhes escutasse. Deveriam mesmo.
Os dias se passavam sempre na mesma monotonia, Luana entrava as seis da matina, preparava o café para o casal e após eles comerem, ela e a filha o faziam, logo seguia com seus afazeres diários.
Chegava época das chuvas. Nesse tempo, temporais furiosos descarregavam sua energia por sobre a cidades, enchentes e desabamentos eram comuns e a maioria já esperava por tais acontecimentos. Aqueles mais afetados se encontravam em áreas de risco na periferia da cidade, o que lhes restava era orar.
Logo com o começo das chuvas, a casa das mulheres balançava durante as madrugadas, ambas abraçavam o pai e o marido, André, na cama que compartilhavam. Dado dia, antes de começar a tormenta, os ventos arrancaram algumas telhas, já caindo algumas gotas por entre elas. O homem pegou uma escada e foi a subir no telhado, precisava consertar antes da chuva começar, mesmo contra os pedidos daquelas que dele também precisavam.
Por acaso, estava naquela região e podia ver com meus próprios como se sucedeu. Foi um caso rápido, na verdade, uma sibipiruna caiu por sobre aquela casa, provocando a queda de algumas paredes e por consequência, a de André.
Alguns dias mais tarde passei na casa daquele casal esquisito. Luana e Cecília estavam pedindo abrigo, por estarem sem lar, com relutância Henrique aceitou, apenas por insistência de Lúcia, mas com a condição de haver limites entre empregada e empregador.
A criança tilintava de alegria, apenas se lembrava do pai internado quando via sua mãe triste ou iam ao hospital. A perspectiva de viver naquela casa era fenomenal aos seus nove anos, iria se gabar horrores na escola.
Toda manhã acordava, recolhia seu lençol e travesseiros e os guardava dentro de um armário no canto da cozinha, lá era o lugar em que as duas dormiam. Se aprontava e ia para a escola, no fim da tarde chegava e ia explorar o jardim, sua mãe pedia para ela não andar pela casa, o incomodo já era grande demais.
As crianças continuavam a chamar para brincar, contavam piadas e ela ria e gargalhava, o problema real era que ela não conseguia encontrar as crianças, mesmo buscando por toda parte.
Na madrugada de domingo da segunda semana sentiu algo lhe roçar as mãos, ao acordar, não viu o que era. A partir dessa noite, sempre acordava com essa sensação e voltava a dormir. A segunda semana terminou, e como elas incomodavam menos do que o esperado, o senhor não estava com pressa de as expulsar. A segunda seguinte carregou alguma novidade, sentiu que algo puxava os cabelos, viu e seguiu a sombra. Sua mãe não estava ao seu lado, de imediato mudou o caminho, queria achar a mãe.
Passou por corredores escuros, aqueles que brilhavam durante o dia, resplandeciam escuridão durante a noite, tornando a caminhada mais longa e medonha. Viu a sala principal com algumas luzes acessas. Na porta estava sua mãe, olhando amedrontada o que se seguia no cômodo, por instinto, olhou para trás, seus olhos estavam vermelhos e cheios de lágrimas, viu a filha. De forma brusca e repente, correu em pisadas silenciosas ao encontro da pequena, a agarrou no colo e foram para o banheiro da lavanderia. A porta foi trancada, tenho certeza de que lá ficaram pelo resto da noite.
A essa altura eu já estava pronto para falar com a moleca, ela não prestava atenção aos meus chamados, tinha que a avisar, mas acabou que decidi apenas observar.
Luana estava cada vez mais amarelada e franzina. Assim que as luzes eram apagadas, abraçava sua cria como se sua vida dependesse disso. Seu olhar começou a vidrar, se assustava com qualquer ruído.
Eu via as borboletas morrerem no jardim, cada vez mais corpinhos espalhados por todos os cantos. Um bem-te-vi tem que aproveitar as oportunidades que a vida dá. Foi uma boa alimentação.
As crianças falavam com ela mais constantemente, nós ouvíamos suas vozes. Elas pediam para brincar de esconde-esconde, as regras eram esconder cada um dos dedos na casa toda para que as outras pudessem encontrar. Quem tivesse mais dedos vencia. Me pareceu uma brincadeira incomum, quem entende a mente humana.
Cecília parou de rir e correr. Apenas conversava com as crianças, elas sussurravam. Me aproximei mais dela nessa época. Estavam a orientando em como tirar todas de lá. Faça algo, Ceci, quer que fiquemos aqui para sempre? Elas costumavam dizer.
A noite a garota não dormia. Espiava pela casa, cheirava e tocava. Até que as luzes do mesmo cômodo que sua mãe havia visto estavam acessas novamente. Escorregou até lá e observou. Os senhores estavam lá, beliscavam algo que parecia saboroso. Henrique a viu e a convidou para se juntar a eles. Timidamente ela foi ao encontro do casal, se sentou em uma poltrona e pegou um petisco. Crocante e macio. Eram os dedos que as crianças tinham falado.
Ela se assustou, sem fazer alarde, comeu o que estava em suas mãos e saiu calada, o casal a olhava satisfeita. Cecília já estava com dez anos e a um mês naquele lugar. Agora, pela primeira vez observava com atenção os móveis da casa. Um abajur era feito pele, um porta balas, de crânio e o choque de realidade a abateu.
Na noite seguinte perguntou baixinho a sua mãe o porquê delas não irem embora, a resposta foi que precisavam do dinheiro, nenhum outro pagava melhor.
Dada manhã, evitando os donos da casa, a mocinha se sentou de frente a uma janela, vendo o brilho do sol tonalizando seus cabelos castanhos para o dourado. Escutou um chamado.
“Lia”
Ela se atentou, mas aparentava também o desgaste da mãe com aquela situação, já temia pela recuperação do pai.
“Me deixe em paz”
“Meu nome é três, tenho onze anos, preciso sair. Por favor, me escute”
Era um lamento que doía a quem escutava, e a um coração ainda inocente, doeu ainda mais. A voz estava muito baixa e pela primeira vez ela percebeu que vinha debaixo do piso.
“Quantas crianças estão com você?”
“Somos cinco”
Um ranger de porta e vozes puderam ser escutadas.
“Socorro”
E tudo ficou em silêncio.
Ela olhou em volta e por um segundo completo, podia jurar que olhava diretamente para meus olhos, como se me questionasse o que fazer. Dei um sorriso, ela se levantou e foi embora daquela parte da casa.
A estada já durava dois meses, o episódio com os patrões nunca voltou a acontecer, ela havia parado de caminhar pela casa a noite enquanto os dois estivessem acordado. Esperava horas até poder procurar a forma de achar os cativos, que antes acreditava serem amigos imaginários. Em uma dessas procuras, esbarrou em uma mesinha de centro, lugar em que havia uma jarra de água esquecida. O líquido escorreu por entre as tabuas, não se espalhando, mas descendo.
“A entrada”
Arrumou a pequena bagunça e foi se deitar. Pela manhã segredou os acontecimentos para sua mãe, juntas combinaram de tentar fazer algo, ao mesmo tempo em que suavam de medo. Naquele dia, pela primeira vez em mais de cinquenta dias, foram chamadas para se juntar a mesa. Luana mal conseguia engolir, seu estômago rodava.
Lúcia falou sobre assuntos cotidianos, informou que estava grávida e que ambos estavam muito felizes, querendo compartilhar a alegria com muita carne e pães de alho. Mãe e filha comeram o que havia no prato com asco, não disseram qual animal proveu a carne.
Sem mais emoções, parte da tarde passou tranquilamente. O casal avisou que iriam comprar algumas das coisas necessárias para o bebê a caminho. Luana pensou rápido e decidiu que aquele era o momento. Pegou um martelo na garagem e tentou arrebentar a madeira do chão no local que a filha indicou. O sol indicava o fim do dia, luzes alaranjadas cobriam a cena.
Com muito esforço e alguns chutes a madeira se quebrou. A entrada levava a uma escada de metal que descia por algo em torno de um metro, ao descer por ela, a mulher se deu com uma portinha fechada apenas por uma tranca frouxa. Ao entrarem, viram cinco figuras espalhadas pelo chão, algumas juntas, outras distantes. Esses corpos reagiram automaticamente a entrada de luz se encolhendo contra a parede, para logo ao perceberem que eram pessoas diferentes, duas delas gritaram por Cecília. Ela se encontrava dura e inflexível, essas crianças eram o Três e o Quatro, que falavam com ela há semanas.
Luana começou a passar os pequenos rapidamente para cima. Seu horror só cresceu a medida que subia um a um. Três era a maior, uma menina que teria sido linda, caso não estivesse retalhada e queimada. Aquele chamado Quatro, sem seis dos dedos das mãos e retalhos pelos braços. Cinco estava sem os globos oculares. Seis, um dos mais novos, tinha que ser carregado, pois não contava com as pernas até a junta do joelho. Sete era o mais imaculado, faltando as duas orelhas e dois dedos.
Uma grande e larga sombra se projetou por cima da mulher. Seu corpo caiu muito suavemente, seus olhos fecharam como se estivesse dormindo. Cecília estava do lado de fora com Três esperando os outros. O céu estava encantador, como se a esperança tivesse retornado a vida de todos, já se juntavam com elas o Quatro guiando o Cinco.
“Quem são o Um e Dois?”
“Eles foram os primeiros a não suportar, não sei se aguento mais um dia”
“Acho que mamãe está grávida novamente”
“Deus, nos perdoe se tivermos falhado com o Senhor”
Uma estrela brilhava no céu rosa azulado. Algo a tampou.
“Crianças, hora de voltar para dentro, vai esfriar, sabe que a mamãe não gosta que se sintam mal”